I
Há regimes políticos que, apesar de nascerem de bons e justos propósitos construtivistas, quando a degenerescência os faz cair nas teias do devorismo e da empregomania, apodrecem por dentro e tentam sobreviver gerindo a manutenção no poder através da erosão situacionista, daquele rotativismo onde se vai fingindo mudar para que tudo fique na mesma.
II
Tudo começa, aliás, pelo revolucionarismo frustrado, por essa esquizofrenia puritana onde se desperdiçam energias em verborreia, vinganças e perseguições inquisitoriais.
III
Essa oportunidade perdida para a racionalidade das metodologias reformistas, as únicas que seriam capazes da necessária regeneração que sempre foi conservadora dos valores permanecentes da colectividade, apesar de exigir revolucionários objectivos quanto à pilotagem do futuro e ao empenhamento individual.
IV
Sem o urgente regresso às virtudes de um certo radicalismo descentralizador não haverá uma espontânea unidade nacional. Sem assumirmos a denúncia dos modelos absolutistas do Estado a que chegámos não haverá regeneração da nação portuguesa.
V
Só através da restauração das liberdades locais e das proibidas liberdades regionais, poderemos federar as muitas pequenas pátrias da nossa grande pátria. Só através do liberdadeirismo dos muitos povos do nosso grande povo é que poderemos extinguir o Leviathan do centralismo absolutista que é tanto mais perigoso quanto se disfarça de visitador das vilas e aldeias em tempo de campanhas eleitorais.
VI
O programa de reforma administrativa de Lisboa é inviável com estas regras do jogo impostas pelos governos e parlamentos, onde a super-estrutura de todas candidaturas está neofeudalmente espartilhada pelos micropoderes da partidocracia e das forças vivas patobravistas. Nenhum quer ruptura e vão acabar por esta velha cabeça da república, quando a cidade é bem mais do que os Açores ou do que a Madeira que, felizmente, já se libertaram do jugo colonial dos capitaleiros...
VII
O principal adversário de Lisboa, esta cidade feita por subscrição nacional (Augusto de Castro), é o estadão governamentalista. Nem repara que a cidade é, hoje, uma das zonas mais socialmente degradadas do país, onde os autarcas deveriam ser vozes tribunícias desta revolta, copiando as reivindicações dos líderes das regiões autónomas...
VIII
Qualquer analista de estratégia e desenvolvimento manda que nos adaptemos a modelos já praticados em Madrid, Paris e todas as cidades capitais da dimensão de Lisboa. Até poderíamos reparar que Alexandre Herculano chegou a ser presidente de Belém-Ajuda para a criação de um pólo de desenvolvimento industrial da cidade no século XIX...
IX
Isto é, não mudar Lisboa toda ao mesmo tempo, segundo a abstracção do mesmo pronto-a-vestir, mas ir experimentando ousadias sucessivamente.
X
O município de Lisboa é grande demais para podermos ser vizinhos em cidadania de participação (deveria desdobrar-se em pequenas autarquias, bem maiores do que o Castelo e bem menores do que os Olivais). Mas é ao mesmo tempo pequeno demais para os grandes problemas que são da área metropolitana.
XI
Logo, deveríamos dividir para unificar. Dividir a câmara em várias câmaras, como unificar a câmara a que chegámos com outras câmaras, numa espécie de entidade política regional. Logo, em vez de mapizarmos freguesias históricas num computador de estatísticas sem pessoas, deveríamos reaprender o verbo federar, pela criação de novos centros administrativos sem extinções feitas em nome de amanhãs que cantam que, em breve, serão pretérito.
XII
A democracia, por causa das secções locais da partidocracia dominante, não quer desfazer o mapa da pesada herança do autoritarismo do Código de Costa Cabral e Marcello Caetano. Nem sequer volta ao velho Senado, intermunicipal, que resistiu às cunhas do Marquês de Pombal
Lisboa deste camaralismo precisava de uma lei especial que a voltasse a configurar como cabeça da república. O que temos ainda é um pronto-a-vestir quase igual a Freixo-de-Espada-à-Cinta, configurado pelos administrativistas do velho ministério do interior...
XIII
Todos temos uma pequena pátria, incluindo os que foram obrigados a migrar para esta cidade feita por subscrição nacional, a que chamamos Lisboa.
XIV
Os senhores burocratas e partidocratas, sejam chefes de segunda ordem, directores, autarcas, ministros ou eurocratas, são especialistas em eternos erros de cálculo. Porque não conseguem adaptar a prospectiva à conjuntura e vão dando, a esta, o nome de estrutura.
XV
A única certeza que podemos ter não está na futurologia das circunstâncias, mas antes em procurarmos o eixo de eternidade em torno do qual vai circular a roda da história. Porque não é a história que faz o homem, mas antes o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo.
XVI
E não há nada de mais historicamente comprovado do que o falhanço das sucessivas "révolutions d'en haut", programadas pelos errados "catecismos dos industriais" com que nos querem escrever antecipadamente as novas religiões da humanidade, em nome da "ordem e do progresso". Porque a história não é o produto das boas, ou más, intenções de um, ou de alguns dos homens, mas antes o resultado da efectiva acção de todos os homens.
XVII
Em português antigo não é verdade que a democracia nasceu nas cidades. O que é verdade para a Grécia antiga, talvez não o seja para Portugal. Que, aqui, a democracia mergulha as suas raízes no visigótico conventus publicus vicinorum, começando por ser a igualdade aldeã, assente na freguesia, nessa comuna sem carta, como lhe chamava António Sardinha que, nisto, tinha como mestres Herculano, Henriques Nogueira e Teófilo.
XVIII
Foi, freguesia a freguesia, que fizemos o concelho. Foi, concelho a concelho, que nos demos em comunidade de nossa terra, com voz em Cortes. Foi, a partir da aldeia, que acedemos à república maior, ao abraço armilar, que passámos, de homens bons, a homens livres, sempre a caminho da república universal, da nação, enquanto super-nação futura.
XIX
O Portugal político, isto é, o Portugal democrático, porque não há polis sem democracia, é essencialmente de vizinhos, dos que, pelo small is beautiful, sabem que só pode haver comunidade pelo face to face. Com efeito, os profundos factores democráticos da formação de Portugal levaram a que as nossas cidades e vilas fossem feitas por subscrição aldeã.
XX
Mesmo Lisboa, das sete colinas ou doutras aldeias federadas, não deixa de ser terra de hortas e de gente nostálgica do rio que passa em suas terras. Talvez só o Porto seja retintamente burguês, no seu oppidum, feito capital do bloco rural do Norte, como porta aberta ao comércio externo e ao sentido de viagem. Aquilo a que muito chamam pequeno-burgues talvez não passe desses habitantes de uma urbe com saudades da santa-terrinha, dos que sofreram o cerco dos invasores e que a partir dos portos urbanos peregrinaram por todo o mundo. Para plantarem mais aldeias, mais concelhos, mais cidades...
XXI
O nosso velho Estado Novo, dito Welfare State, ainda tem suficientes jóias da coroa para evitar que se entre no rodopio do Warfare State, até porque sempre podemos privatizar as praias ou vender em lotes o novo espaço de acrescentamento da zona económica exclusiva. Aliás, não é de descartar a hipótese de haver petróleo no Beato. E enquanto o pau vai e vem, de Bruxelas para Pequim, folgarão as costas da engenharia financeira, com muitos honestos a gerirem corruptos e outros tantos corruptos a gerirem honestos, em regime de alterne.
XXII
Se o dito Estado-Providência se tornou num Estado-Falência, só me custa ver que o tal discurso quanto à moralização da administração pública continue a ser feito por alguns que representam o pior do que houve a nível do negocismo feito outsourcing, através das muitas sociedades de economia mística, encabeçadas pelos desempregados da partidocracia.
XXIII
Importa voltar a querer, não uma ilha sem lugar, onde é provável o afundamento sem regresso, nem o menos mau da empregomania e do salve-se quem puder, mas o aqui e agora da subversão pela justiça, num transcendente situado nas circunstâncias do tempo e do lugar. Naquilo que Jacques Maritain qualificava como um ideal histórico concreto, onde, em vez do castelhano Dom Quixote, a lutar contra os moinhos de vento, haja um Zé Sancho Pança, ou João Semana, a semear para colher, sem ter que ser confiscado por um sistema quase ladrão, que continua a isentar os privilegiados que têm lobby e a permitir a evasão fiscal, sem um programa consequente de luta contra a corrupção e o indiferentismo cívico. O presente Estado dito de Bem-Estar é mero manto diáfano de fraseologia discursiva que recobre a verdade nua e crua da injustiça. Cuidado com o evitável Estado de Mal-Estar!