Registo de algumas análises, farpas e aforismos no Facebook de José Adelino Maltez

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Dez 07

1 — Como analisa hoje as funções do Estado e a forma como as executa?

 

 O Estado segundo os nossos actuais conceitos, não tem apenas um corpus, não é apenas um determinado conjunto geo-humano dotado de uma certa organização. Não se resume à mistura aditiva de um elemento territorial, de um elemento societário e do poder político. Para que haja um Estado, exige-se não só a exclusividade desse poder político sobre o conjunto geo-humano que o mesmo organiza, impedindo que outros poderes políticos possam ter supremo poder sobre tal conjunto, como também a racionalidade, isto é, a existência de elementos teleológicos, daquilo que normalmente se designa como os fins do Estado.

 

Para além de uma sociedade, de uma terra e de um governo, impõe-se um elemento espiritual capaz de dar legitimidade ao monopólio da força pública, de dar unidade ou ordenamento. Exige-se a tal exclusividade que, desde Jean Bodin, vai conseguir-se pelo recurso à magia do nome soberania.

 

A tal exclusividade que, surgindo de um conceito teológico secularizado, consegue ser traduzida, com o mínimo de operacionalidade lógica, através dos conceitos jurídicos, os únicos que dispõem daquela tecnicidade instrumental que permite um mínimo de universalidade comunicacional, pelo menos desde que, com as guerras civis europeias a que chamámos guerras religiosas, a linguagem jurídica sucedeu à linguagem teológica, filosófica e ética e se transformou no principal campo de conversação da racionalidade.

 

Falar em Estado é, pois, falar numa totalidade que vai além da mera actividade de um aparelho do poder, a cidade do comando ou os governantes, sobre um determinado conjunto geo-humano, a cidade da obediência ou os governados. O conceito de pátria, de terra dos pais, pode, nalguns casos, ser necessário, mas não é suficiente. Do mesmo modo, também podem ser necessários, embora não suficientes, os conceitos de grupo humano de origem, a nação, ou de governação. Exige-se sempre que o aparelho de poder, ou o principado, os organize politicamente e juridicamente, tanto em nome da assunção pela comunidade de um determinado espírito de unidade, a chamada consciência nacional, como de acordo com as regras do direito.

 

O que só pode conseguir-se quando esse todo tem determinados fins, que agora costumam catalogar-se segundo a tríade justiça, segurança, bem estar. Isto é, o Estado exige que o político se transforme numa espécie de relação metapolítica, que os poderes se volvam naquela relação que os transfigura em Poder, a tal rede de micropoderes que se institucionaliza em algo dotado de universalidade e onde podem enquadrar-se muitas diferenças, dado que, para atingir-se tal universalidade, há uma multiplicidade de formas de mistura dos ingredientes.

 

 

2 — Em termos estruturais, as funções do Estado são hoje, em Portugal, as mais indicadas tendo em conta a situação do País? Em que sectores deve o Estado, na sua opinião, estar presente?

 

O Estado  tem de ser  perspectivado como um sistema aberto, como uma instituição de instituições, isto é, como um sistema que troca matéria com o exterior e que integra vários subsistemas sociais, com entradas reivindicativas (input) e saídas prestativas (output), e onde a política seria uma actividade de harmonização de contrários, obtida pelo consentimento e pela persuasão. Governar tornar-se-ia assim num processo de ajustamento entre grupos, num processo de negociação e de troca, num modo dinâmico de gerir crises, através da articulação de interesses. Porque o Estado, segundo Rials,  é o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensões da sociedade


Neste sentido, o Estado aparece como simples parcela de uma mais ampla sociedade política, admitindo-se um político supra-estadual, infra-estadual e a latere do próprio Estado, pelo que seria possível conceber tanto a poliarquia de uma repartição originária do poder político por vários corpos sociais, como também a própria possibilidade de uma ordem universal, de uma civitas maxima, de uma sociedade do género humano. Por outras palavras, o Estado não seria o fim da história do político nem o hegeliano advento de Deus à terra, mas uma simples contingência histórica. Porque teria havido unidades políticas maiores e porque deveriam conceber-se comunidades políticas supra-estaduais, incluindo essa sociedade das nações, em que cada Estado, mesmo o mais pequeno, possa esperar a sua segurança e os seus direitos, não do seu próprio poder ou do seu próprios juízo jurídico, mas dessa grande sociedade das nações, duma força unida e da decisão da vontade comum, fundamentada em leis, como diria Kant

 

3 — Em termos de políticas públicas a sua execução tem sido a melhor? Os cidadãos têm beneficiado das políticas do Estado?

 

Diremos, na senda de Daniel Bell, que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, tentamos projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos, quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos exigem desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização.

 

De qualquer maneira, eis que Estado é sempre produto da natureza racional e da vontade do homem. O poder supremo, necessário para que o Estado seja uma comunidade perfeita, se é um poder que, na sua ordem, não reconhece nenhum poder superior, eis que tem de adequar-se a outros poderes qualitativamente superiores, prosseguindo outros fins, de acordo com a lógica daquele princípio da subsidiariedade que, reconhecendo o Estado como sujeito autónomo de decisão moral, em nome da autonomia e da subjectividade da sociedade, para utilizarmos palavras de João Paulo II, não deixa de salientar que uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum.

 

 

4 — As políticas públicas constituem um dos principais resultados da acção do Estado. Na sua opinião essa acção é visível?

 

A questão fundamental não está na visualização da sociedade como um contrapoder, mas na assunção da plenitude da democracia. Em democracia, o Estado não é um c'est moi do soberano exterior à sociedade. Em democracia, o Estado é um c'est nous, um c'est tout le monde. Em democracia, o Estado somos nós, os cidadãos, os que têm o dever e o direito de participar na decisão e de escolher os seus representantes.

Nós, cada um de nós, os homens comuns, somos as únicas realidades substanciais da política. Os grupos, as instituições e a própria instituição das instituições que abstractizámos como Estado, não passam de meras realidades relacionais, de formas que devem servir o conteúdo: os homens que as vivificam.

 

O fundamental está no refazer da aliança, ou da comunhão, entre o Estado a que chegámos e a Sociedade que temos. Está menos na contratualização de duas fraquezas e mais no estabelecimento de uma institucionalização em que 1+1 seja mais do que o resultado aritmético. Em que a união comunitária da política faça a força do pluribus unum, gerando uma mais-valia de sonho, de imaginação, de energia.

Em suma, precisamos de política-Política, pela reinvenção dos laços comunitários de uma pilotagem do futuro, capaz de refazer o software das pilotagens automáticas que os tecnocratas e pequenos e médios intelectuais costumam importar através da tradução em calão de muitas fotocópias pirateadas a partir de manuais de programação estranhos à nossa índole, à nossa maneira de estar no mundo, à nossa realidade vivencial.

Para tanto, importa distinguir o Estado-Aparelho de poder, o principado, do Estado-Comunidade, a res publica, a fim de se declarar que não pode haver democracia se aquele não resultar deste. O Estado-Aparelho de poder em democracia tem de ser o representante do Estado-Comunidade, pois o soberano não pode ser algo que paire sobre uma unidimensionalidade de súbditos. Em democracia, a soberania resulta da cidadania, o Estado-Aparelho de poder tem de potenciar-se no Estado-Comunidade.

 

Logo, tanto tem de haver integração da sociedade no Estado como uma resposta (output) do Estado às exigências e aos apoios (input) da sociedade. Porque se o principado não for mero instrumento da res publica, a comunidade tem de revoltar-se contra o poder estabelecido e expulsar o usurpador, se possível, através dos meios legais disponíveis.

 

Sucede que a democracia constitui apenas um ideal, um sentido regulativo, da mesma natureza que a exigência do Estado de Direito democrático, aquele que proclama que o fundamento e os limites do poder passam pelo direito e por aquela forma que é irmã gémea da liberdade e inimiga do arbítrio. Já não é lei aquilo que o príncipe diz e o príncipe está submetido à própria lei que edita.

Na prática, porém, a teoria é outra, porque qualquer democracia, marcada que está pela plenitude da procura da perfeição, tem de ser instrumento dos homens imperfeitos que somos, e das inevitáveis instituições imperfeitas que constituímos.

Qualquer democracia assume-se, no plano das realidades, como uma poliarquia, como um sistema de competição pluralista e como uma sociedade aberta. Democracia para o país legal e para a cidade dos deuses e dos super-homens. Poliarquia para o país das realidades e para a cidade terrena dos homens concretos! E é dessa mistura entre o céu dos princípios e o enlameado, ou empoeirado, do caminho pisado que, afinal, nós nos fazemos.

 

 

 

5 — Com um mundo cada vez mais globalizado, de que forma pode o «nosso» Estado globalizar-se e acompanhar essa evolução?

 

Está em crise o modelo de Estado que, de cima para baixo, do soberano para os súbditos, pretendia construir uma nação. Está em crise o modelo de construção do político onde se dá o primado do poder sobre a liberdade, o predomínio do Estado-aparelho-de-poder sobre o Estado-comunidade, do príncipe sobre a república.

Utilizando as categorias de Maquiavel, diremos que estão em crise os principados, não estão em crise as repúblicas. Mas, se utilizarmos termos paralelos, diremos que estão em crise os soberanos, mas não estão em crise as nações


Está em crise aquele modelo absolutista do político que continua o processo dos déspotas esclarecidos, como Luís XIV, Frederico o Grande da Prússia, Pedro o Grande da Rússia ou o nosso Marquês de Pombal. O modelo que permaneceu e se reforçou com o Estado jacobino da Revolução Francesa, principalmente de1792 a 1796, constituindo um dos primeiros modelos de um Estado terrorista que é continuado por Napoleão, Lenine, Mussolini, Hitler, Estaline, Mao ou Pol Pot.

 

Esse que tratou de executar adversários pela simples razão de pertencerem a um grupo diferente, considerado como contra-revolucionário, esse que reinventou o delito de opinião e que aumentou a massa dos prisioneiros de consciência; esse que praticou massivamente o genocídio; esse que utilizou como forma de governar a confiscação e que transformou o cidadão em carne para canhão.

 

Está em causa o modelo de Estado que tentou praticar a engenharia social para a construção de um homem novo. Está em crise o poder, não está em crise a liberdade. O poder nasceu para se discutir, a liberdade para o discutir. Como dizia Hannah Arendt, enquanto a independência nacional, ou seja, a isenção de dominação estrangeira, e a soberania do Estado, ou seja, a pretensão de total e ilimitado poder nas relações externas, estiverem identificadas .


Julgamos não estar em crise o modelo de nação-Estado, isto é, da nação que pretende resistir como polis ou da nação que pretende autodeterminar-se. Aquele modelo que, em nome do small is beautiful, pretende que, a cada nação, corresponda um Estado, que o universal possa atingir-se através da diferença.

 

 

6 — É ou não possível ao Estado, acompanhando o processo da globalização, manter a sua acção social?

 

Está em crise a autenticidade do conceito de soberania, não está em crise a nação. Está em crise o modelo absolutista, não está em crise a perspectiva libertacionista. Estão em crise os nacionalismos que se construíram, e constróem, à imagem e semelhança dos estadualismos, os nacionalismos que, esquecidos da libertação nacional, tendem a estadualizar o político.

 

Está em crise a conjuntural modernidade do Estado, não está em crise o permanecente do político. Estão em crise os Estados que se despolitizam, não estão em crise os Estados que se repolitizam, que se revigoram no cidadanismo da polis, da democracia e da iuris societas. Está em crise a razão de Estado, não está em crise o Estado-razão, o Estado de Direito Democrático.

 

Está em crise o modelo de polis que não se vivifica nas actuais circunstâncias da revolução globalista e da revolução do localismo. Não está em crise a dimensão estadual a que pode dar-se a autenticidade da cidadania.

Não está em crise aquele modelo de Estado que nasce da comunidade para o aparelho de Poder. Não está em crise a nação politicamente organizada, o aparelho de poder que brota da libertação da comunidade. Está em crise o modelo de centralização soberanista que foi do absolutismo, despótico ou jacobino, o qual continua a querer homogeneizar a diversidade das várias comunidades naturais.

Está em crise o modelo de Estado que, transformando os indivíduos do direito natural em cidadãos do direito positivado, tratou de estatizar todos os direitos originários e naturais e decretou que não poderia existir qualquer espécie de intermediação de corpos políticos entre o mesmo indivíduo e o centro do aparelho de poder estadual. Esse modelo que expropriou as comunas, as regiões, os grupos profissionais e outros poderes ditos periféricos, decretando a impossibilidade de uma pluralidade de centros de poder soberanos se submeterem a um mesmo ente coordenador.

 

 

7 — É ou não possível um Estado ser liberal e ao mesmo tempo social?

 

Julgamos que o debate dos anos setenta e oitenta em torno da dialéctica colectivismo/liberalismo que muitos, subliminarmente, confundem com o dualismo Estado/Sociedade, perdeu o sentido nesta fase pós-socialista e de desconstrução daquele Estado-Providência que foi um Estado de Bem-Estar e que agora é um Estado de Mal-Estar.

 

De um Welfare State, aliás, muito à portuguesa que, sendo fundado pelo salazarismo como Estado Novo com algum atraso comparativamente a Napoleão III e a Bismarck, diga-se de passagem, nem por isso deixou de ser o respectivo herdeiro quando gerido pelo marcelismo, pelo gonçalvismo e pela pós-revolução, donde, em muitos subsistemas, ainda não saimos.

 

As linhas de força que apontavam para o mais sociedade, menos Estado e para a libertação da sociedade civil, mesmo quando remodeladas pelo aggiornamento do menos Estado, melhor Estado, ou de menos Estado, mais sociedade, têm agora sabor algo retroactivo, muito principalmente face ao actual processo de revolução globalista a que, entre nós, acresce a aventura de participação no projecto europeu.

 

Porque, perante um Estado que é, ao mesmo tempo, grande demais (no centralismo, na burocratite, no gestionarismo e no regulamentarismo) e pequeno demais (face aos desafios da internacionalização da segurança, da economia e das ameaças globais do risco maior, seja armamentismo, ambiente, doença ou fome), isto é, um Estado com muita adiposidade, pouco músculo e terrível défice de nervos, persistirmos em serôdios soberanismos de pacotilha acaciana é minguarmos, senão suicidarmos, o essencial daquela realizável vontade de sermos independentes que nos fundou, manteve e restaurou em anteriores crises de viabilidade.

 

O Estado e a Sociedade apenas são dois dos rostos da comunidade politicamente organizada, de uma comunidade política que tem de se manter viável face ao exterior e fiável face ao interior. O Estado e a Sociedade correm o risco de se perderem nas teias dissolventes de uma mundialização que tanto tem novas formas de público, os grandes espaços, como novas formas de privado, a Internacional das sociedades civis.

O Estado e a Sociedade não são coisas, são antes processos que se exigem mutuamente; não podem entrar num duelo revolucionário ou contra-revolucionário que, enfraquecendo-os, inviabiliza a comunidade política que devem servir.

 

 

8 — Como analisa, em termos de funções do Estado, a forma como este Governo tem direccionado as políticas públicas, sobretudo em áreas decisivas como a Educação, a Saúde e a Justiça?

 

Tentando, agora, pensar em português para o Portugal de hoje, diremos que pode estar em causa a viabilidade do modelo português de Estado. Com efeito, o Estado que os portugueses instituíram e refundaram sofre de alguns desafios existenciais que constituem o cerne da presente crise.

Começa por estar em crise o primórdio de qualquer comunidade política: o Estado-Segurança, dado que se põe em causa o monopólio da força física legítima, tanto no plano da segurança interna como no plano da própria segurança externa. A força legítima ameaça desintegrar-se pelos sintomas de regresso à vingança privada, nomeadamente através do apelo que muitos fazem a agências privadas de segurança que, assim, negam a essência do aqui d'el rei, tal como aparecia na célebre Lei Mental de D. Duarte que lançou as bases do predomínio do direito sobre o arbítrio do Machtstaat, mesmo que vestido das peles de cordeiro de uma higiénica companhia de seguros funcionando a cunhas.


Segue-se a crise do Estado-Administração da Justiça ou do Estado Justiceiro, a crise da confiança dos povos nos seus juízes e nos seus procuradores, com a ameaça concomitante de esporádicas emanações da Lei de Lynch e, por vezes, pelo desvario de certos mini-pogroms contra os pigmentarmente diferentes com que se deleita o falso nacionalismo zoológico de importação. O que leva alguns, marcados pelas sombras de tal horizonte de medo, a propor que eliminemos a plurissecularidade consequente do nosso humanitarismo penal, quando o caminho é apenas darmos meios fácticos ao humanitarismo e não invertermos os valores de que nos orgulhamos. Mas também não nos devemos esquecer dos muitos erros que cometemos com o legalismo, a chicana processual e a falta de sentido de missão de alguns servidores da Justiça, tentados pelo sentido de casta dos corpos especiais e pelo vedetismo de certa espectacularidade. Ai de nós se enveredarmos pelo appeal mediático de uma qualquer telejustiça! Ai de nós se o terceiro poder se conubiar com o chamado quarto poder! Porque então só daí sairemos com juízes eleitos ou com juízes sorteados...

 

Vem, depois, a crise do Estado-Imposto. Parece que nos esquecemos que a história da democracia é a história do imposto, dessa longa resistência dos povos no sentido da necessidade do consentimento para a tributação, coisa que constituiu sempre o cerne das Magna Charta e que praticamos desde que instituimos o Parlamento em 1253. O que está em causa é simplesmente a evasão fiscal, um problema mais moral do que fiscalista, dado que, neste momento, continua a pagar o justo pelo pecador, o que menos tem em benefício da petulância do prevaricador, porque, não havendo moralidade, deixa de haver consciência comunitária de punição e sentido contratual de contribuinte. Quando é impossível o aumento da nossa carga fiscal e não parece curial deixarmos de honrar os compromissos assumidos com os crescentes milhões de pensionistas.

Finalmente, é a crise do Estado-Burocracia, esse instrumento vital do Estado racional-normativo, dado que, de tanta reforma administrativa e de tanta modernização administrativa, se perdeu o próprio sentido dos gestos e se desprestigiou o funcionário, aquele que é um servus ministerialis, o escravo de uma função marcada pelo direito à carreira e paga pelo vencimento, contra o clientelismo e o emolumento. Uma crise que determinados erros de falta de pensamento agravaram, dado que falta uma Escola de Quadros e uma coordenação de policies que nos liberte de certo orçamentalismo casuístico, para não falarmos de alguma tentação dos anos oitenta pela privatização dos métodos de gestão pública, na mesma altura em que as grandes holdings privadas copiam modelos da estratégia dos governments.

 

Todas estas crises sitiam a democracia e o Estado de Direito, no qual o poder político, tanto o do poder governante como o do poder representativo, deve preponderar sobre os grupos e sobre as facções. De novo, o poder político não é uma coisa, é uma relação, um processo de condução da network structure, de comando da rede de micropoderes, um sistema de sistemas e subsistemas, em que até aquilo que habitualmente se designa como classe política não passa hoje de um mero subsistema de um processo global.

É evidente que a governação, isto é, a pilotagem do futuro, numa sociedade aberta e pluralista não passa de um modo dinâmico de gestão de crises, dado que o governo pelo consentimento impõe a emergência de forças vivas, em que a articulação de interesses e a emergência de pressões constitui o normal anormal da competição.

 

Mas reconhecer o pluralismo não pode significar cedência ao neocorporatism. Do mesmo modo, aceitar as facções, os partidos e a competição para a conquista eleitoral do poder não implica necessariamente a partidocracia.


As democracias e as sociedades abertas estão cercadas pela corrupção em sentido amplo, isto é, pelos inúmeros processos de compra do poder. Tal como as burocracias estão minadas pelo clientelismo, pelo nepotismo, pela pantouflage e pelo negocismo.

Por isso é que as democracias têm de defender-se, em primeiro lugar, contra as degenerescências típicas dos próprios fenómenos democráticos, garantindo-se a democracia com ainda mais democracia, isto é, sem cedências ao despotismo dos césares, das multidões e dos próprios césares de multidões, em que a demagogia, aliada a poderes pessoais tende inevitavelmente para a usurpação e a tirania doces, ou, o que é o mesmo, para a negação do governo pelo consentimento.

Do mesmo modo, não há forma de superar-se a crise da sociedade aberta senão com mais sociedade aberta, incluindo a via do mercado, da internacionalização da economia e do reconhecimento da actual internacionalização da própria sociedade civil. Qualquer regresso ao Estado gestor, ao Estado confiscador ou ao Estado planeador seria desgastarmos o político em funções para as quais não está vocacionado; seria persistirmos no latrocínio.

O que não deve significar cedência à teologia do mercado de certos missionários ultraliberais, mas antes o humilde reconhecimento de que os problemas económicos só se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Porque o mercado não é o Estado, porque a oikos não é a polis.

O nível da política é o que está acima do doméstico, o decisor acima das partes, no qual não há um dono mas um todo de cidadãos que não são os escravos, os dependentes, os clientes ou os súbditos; são antes aqueles que dão o consentimento na decisão, participando na mesma, ainda que federativamente, ou escolhendo os representantes que a proferem em nosso nome para zelar pelos nossos interesses.

 

Mais política é mais Estado no plano qualitativo, para que também possa haver mais Sociedade. Precisamos de mais estratégia de Estado, de mais pensamento de Estado, de mais política internacional, de mais segurança, de mais justiça, de que todos paguem o imposto, de mais imparcialidade da administração, para que haja mais mercado, mais produção, mais solidariedade, mais bem-estar, mais espaço para a intimidade da família e da pessoa; em suma, para a realização do direito dos direitos, que é o direito à felicidade.

 

Só que mais Estado nunca poderá ser o menos Estado de um Estado empresário, de um Estado interventor nos preços e na gestão, de um Estado quase merceeiro, policiesco, vigilante ou caceteiro.

 

Apesar de tudo, a democracia e o Estado de Direito, com partidos e poliarquia, são péssimos regimes políticos... mas os menos péssimos de todos. Bem menos péssimos que qualquer tentação de vanguardismo, elitista ou autoritarista, na qual preponderam sempre os sargentos e os censores, mesmo que com a proverbial brandura de costumes. Bem menos péssimos do que aqueles regimes que, em nome da ideologia, decretam a verdade, esquecendo que o bem tem sempre um bocado de mal e o mal, um pedaço de bem.

 

publicado por José Adelino Maltez às 17:38

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Biografia
Bem mais de meio século de vida; quarenta e dois anos de universidade pública portuguesa; outros tantos de escrita pública no combate de ideias; professor há mais de trinta e cinco e tal; expulso da universidade como estudante; processado como catedrático pelo exercício da palavra em jornais e blogues. Ainda espera que neste reino por cumprir se restaure a república
Invocação
Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: "Há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las"......
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