1
Aferventam-se as almas de hoje com belos escritos de certos historiógrafos, excelentes analistas dos costumes políticos dos nossos finais do século XIX, invocando continuidades sobre o défice e os atavismos devoristas da classe política. E com toda a razão.
2
As muitas e boas leitura da história do Portugal Contemporâneo podem, muito diacronicamente, ocultar-nos o desafio da sincronia europeia e globalizante. Porque se torna impossível caminharmos para Alcácer-Quibir, procurando um curto-circuito que nos devolva um qualquer “mare clausum”, assente no velho triângulo estratégico que, a partir da fundação do Rio de Janeiro, permitisse a reconquista de Luanda e o tráfico negreiro que gerou certos negócios esclavagistas, ou de companhias majestáticas, para os velhos capitaleiros.
3
Voltando às justas sátiras dos velhos vencidos da vida, que certos mais velhos de hoje dizem repudiar, apenas convém recordar que esses antigos críticos da democracia censitária, o foram antes das revoluções e contra-revoluções nos amarguraram o século XX, entre fascismos e comunismos que certos neototalitários lusitanos continuam a traduzir em calão, como se fosse possível um qual1quer D. Sebastião científico, como bem avisava Guerra Junqueiro.
4
O aparelhismo de poder da nossa “belle époque”, entre o regicídio e o republiquicído, apenas sustentava tímidas políticas públicas que, antes do 28 de Maio, nem sequer chegavam aos 10% do PIB. Porque foi Salazar, com meio século de atraso, nos importou Napoleão III e Bismarck, chamando Estado Novo à Providência, antes de Marcello Caetano o rebaptizar como Estado Social.
5
Acresce que a geração do Ultimatum e da República, para além do escoamento de excedentes demográficos para o Brasil, aproveitou o conflito das grandes potências, depois da Conferência de Berlim, para construir, à pressa, o nosso último ciclo imperial, não o que acabou em Goa, em 1961, mas o que durou, pela mobilização da guerra colonial, até à descolonização dita exemplar de 1974 e 1975. A ilusão do “não há Portugal sem África”, como clamava António Ennes e irmanou Paiva Couceiro e Norton de Matos.
6
Aproveitávamos os interstícios de poder que, no continente político que começou com a conquista de Ceuta em 1415, nos permitiam os jogos da balança da Europa. E até intensificámos o esforço com a guerra colonial, só começada depois de Dien Bien Phu, da Conferência de Bandungue e da retirada de Argel. Quando De Gaulle decidiu caminhar para a CEE, através da cooperação intergovernamental, neste híbrido a que damos o nome de projecto europeu.
7
Pardoxalmente, quanto mais nos iludíamos com a africanização, no derradeiro esforço do patriotismo imperial, tanto emigrámos para o Brasil, na monarquia constitucional e na Primeira República, como, no crepúsculo do salazarismo, demos os saltos para as Franças e Araganças, mesmo com mala de cartão, antecipando a presente integração europeia.
8
Daí que sejam verdadeiramente inéditos os novos fenómenos demográficos do presente cavaquismo e dos seus heterónimos, do guterrismo e do socratismo. É a primeira vez na nossa história contemporânea e multi-secular que estamos enjoadamente empedrados nas fronteiras medievais. Daí que uma maioria sociológica de enjoados e insignes ficantes apoie tanto o situacionismo presidencial como o situacionismo governamental, dado que o daquém já não pode safar-se pela procura do d’além.