Registo de algumas análises, farpas e aforismos no Facebook de José Adelino Maltez

20
Set 08

Quem conhece a longa história das nossas sucessivas frustrações colectivas, sabe como é doloroso confirmarmos que a presente democracia deixou de ser dos nobres pais-fundadores e caiu nas teias dos “filhos de algo”. A culpa talvez esteja em certo modo-de-ser daqueles portugueses que não são sonhadores activos, esses que procuraram o paraíso na expansão ou na emigração e que resistem no não retorno. Agora domina o enjoado inactivo e subsidiodependente, acirrado por certa lisonja encantatória de algumas facetas do PREC. Os mesmos que tanto repudiam o universalismo da nossa tradição de tolerância e temem que as chamadas minorias étnicas entrem, com eles, em concorrência face ao assistencialismo de um Estado que pretendia ser de bem-estar e que tende a ser, cada vez mais, de mal-estar.


É do alto destas falésias, entre ventos e marés, que normalmente me escrevo e rescrevo. E tendo sempre na memória uma das primeiras guerrilhas de libertação nacional da história do mundo. Aqui a Oeste da Europa, no Centro da memória de um Portugal que, para se libertar no plural, exige a libertação de cada um dos singulares portugueses que somos. Para aqueles que entendem o sebastianismo como uma tolice utópica e passadista, aqui se recordam os efeitos práticos de um mito activista que sempre serviu de pretexto para uma efectiva movimentação para a mudança. Sou dos que acreditam que D. Sebastião ainda não morreu. Venha para sempre o necessário Quinto Império. O do Espírito Santo, Mateus açoriano, e do poder dos sem poder. Se hoje, não, amanhã será. 


Eu sei que Mateus Álvares não vai vencer e que ele até é, conscientemente, um falso D. Sebastião. Também sei que somos apenas oitocentos guerrilheiros encurralados nas falésias de São Julião. Até reconheço que os nossos discursos terão o destino que levou à inevitável derrota do Manuelinho de Évora. A rede estadual-fradesca do invasor e a magnífica pleiâde dos colaboracionistas, aquilo que vossas premiáveis comendas chamam a "bela ordem", já comanda todos os interstícios do formidável vazio de poder gerado pelas muitas homílias hipócritas e pelas imensas sacristias controladas pela prebenda. Mas também sei que somos o sinal do que há-de ser, as mãos livres que, um dia, hão-de vencer e retomar a lusitana antiga liberdade. 

Há frades livres que vão escrevendo novas e apócrifas actas das Cortes de Lamego, por mais que os hutus organizem os planos de genocídio contra os tutsis, com os doces e higiénicos subsídios das internacionais sentadas em Estrasburgo ou Bruxelas, as tais que aqui vêm retratar o nosso progresso turístico, visando transformar-nos em reserva ecológica mundial, esquecendo que há portugueses que querem ser independentes, que querem a efectiva continuidade da independência política de há oitocentos e tal anos e não apenas o reconhecimento e inventário das ONGs que registam selvagens e primitivos actuais. 

Há muitas mãos papudas, marcadas pelos salamaleques contorcionistas, que podem ser finas e abençoadas, cristãs e democráticas, democristãs e democretinas. Elas podem ainda guardar algumas das pingas tombadas das galhetas e muitos restos de incenso e velas de cera, mas não têm a altura da benção nem a fluidez alada das ascensões. Estão poluídas pela água choca das falsas pias de água que já não é benta e o tlim tlim de tais anéis e pulseirinhas são mais astral de macumba do que ânsia de divino. 

Mesmo a pretensa racionalidade de muitos discursos enlatados é o mais desse mesmo, silogístico e cadavérico, recheado citacionalmente pelas más traduções de revistas a que agora todos podem aceder na Internet. Já cheiram ao bafio de um tempo em que mandava quem estava apenas lá em cima, desses que, para serem ministros, tinham que se fingir heróis galifões nas recepções do "jet set", prometendo noivar as fealdades deserdadas do prazer da felicidade. Agora, há povo e, cada vez mais, intelectuais livres. Talvez ainda possamos evitar a derrota das Cortes de Tomar. Viva Febo Moniz!

Dizia o meu livro de história da instrução primária que no primeiro dia de Dezembro de l640 um grupo de conjurados tratou de restaurar a independência nacional, expulsando os Filipes do trono de Portugal. Mas, cerca de três séculos e meios volvidos, eis que a República Portuguesa e o Estado Espanhol aderiram à U. E. O., depois de , nestes últimos anos, se terem também irmanado nas União Europeia e na Organização do Tratado do Atlântico Norte.

Não há dúvida que comemorarmos o 1º de Dezembro com a lógica da padeira de Aljubarrota constituiria uma clara afronta aos sinais dos tempos. Seria recordarmos o nosso provérbio que diz que de Espanha, nem bom vento nem bom casamento e até certo slogan castelhano que proclama uma Espanha una e grande, de mar a mar, sem Portugal nem Gibraltar. Seria continuarmos a viver de costas uns para os outros, recordando a entrevista concedida por Alfonso XIII ao nosso Diário de Notícias, onde o monarca espanhol considerava Lisboa como o porto natural de Madrid, ou a exortação aos portugueses de José António Primo de Rivera, onde nos incitava a seguir o exemplo de Fernão de Magalhães.

Acontece que Portugal e o Estado Espanhol podem orgulhar-se do facto de serem os únicos vizinhos europeus que há mais de cento e oitenta anos não têm entre si qualquer conflito armado - desde a chamada Guerra das Laranjas, quando perdemos Olivença.

Sucede também que , pela primeira vez, desde a dinastia filipina, as duas entidades estaduais são parceiras das mesmas estruturas supranacionais militares e económicas.

Comemorar o 1º de Dezembro, neste contexto, pode, portanto, constituir um atentado contra os nossos defensores tardios dos Estados-Unidos da Europa. Talvez fosse muito mais conforme aos "ventos da história" recordarmos que os Filipes foram uma espécie de precursores da CEE e que só não conseguiram atingir o alvo por causa da derrota da Invencível Armada.

De qualquer modo, é forçoso reconhecermos que só distorcendo a realidade histórica poderemos dizer que durante os sessenta anos de reinados filipinos Portugal perdeu a respectiva independência. Durante esse período, conforme as linhas constitucionais delineadas nas portuguesíssimas Cortes de Tomar, sempre mantivemos órgãos de governo próprios, o que foi sufragado pelo melhor da inteligência portuguesa da época, com destaque para Frei Bartolomeu dos Mártires ou D. Jerónimo Osório.

Também poucas vezes se salienta o reverso da medalha, ou seja, a influência portuguesa na "eurocracia" da época , bem como o facto de terem vindo para Portugal eminentes vultos da cultura espanhola, com destaque para Francisco Suárez, o Doctor Eximius, que, entre nós, publicou as suas principais obras e cujos restos mortais permanecem em Lisboa.

Só que os enviados culturais dos Filipes a Portugal, nomeadamente os homens da escolástica peninsular e a própria Companhia de Jesus, vieram semear a revolta e voltar o feitiço contra o feiticeiro. Os jesuítas estão por detrás de todos os Manuelinhos de Évora e os suarezistas estruturam toda a teoria da soberania popular que vai servir de argumento a João Pinto Ribeiro, Francisco Velasco Gouveia e demais juristas da Restauração, que levam à prática grande parte das teses que estiveram na base da Revolução Francesa, com século e meio de antecedência.

São estas mesmas teorias que ainda justificam o nosso Estado-Nação e que não impedem uma integração no grande espaço europeu. Ai da Europa democrática se confudir o nacionalismo da "mais antiga nacionalidade da Europa" com os nacionalismos dos impérios frustrados, estes, sim, os reais inimigos da restauração da unidade espiritual da Europa.

No nosso 1º de Dezembro a Espanha só entra por acaso. Calá-lo é trair o cerne da democracia portuguesa em nome do "departamento de secos e molhados da Europa" e não percebermos que, neste ponto, não é Portugal que se deve integrar na CEE, mas sim a CEE que se deve integrar nele, como diria o mestre Agostinho da Silva.

Os mais desleixadamente "ceeistas" que leiam por exemplo uma pequena obra intitulada A Justificação Jurídica da Restauração e a Teoria da Origem Popular do Poder Político, Lisboa, 1964. O respectivo autor chama-se Mário Soares.

Apenas quero recordar que talvez ainda haja uma profunda corrente daquilo que pode ser qualificado como a tradição de um pensamento político português e que não se confunde apenas com um pensamento político em Portugal. Se para tanto se reunirem três condições: que continue a haver Portugal; que haja política; e que até possa existir pensamento.

Porque, para haver Portugal, talvez seja necessário detectar seguras âncoras que mantenham o que Alexandre Herculano qualificou como a vontade de sermos independentes. Coisa que não tem que significar o mesmo do que o exercício de certo conceito de soberania do absolutismo, onde à soberania externa de Jean Bodin, acresceu o delírio centralista da soberania interna de Thomas Hobbes.

Para querermos ser independentes, importa reconhecer-nos como instituição política, isto é, como ideia de obra, gerando manifestações de comunhão entre os cidadãos e com as consequentes regras processuais, a que podemos dar o nome de direito político, adequado a esse eu colectivo a que continuo a dar o nome de nação.

Para tanto, importa reconhecer que Portugal, enquanto génio invisível da cidade (Ferrero) é algo que se pode discutir, dado que, como obra humana, nasce, cresce e morre. Porque só existe como tradição regeneradora, como permanência na renovação.

Só existe como autonomia porque se foi sucessivamente reinventando e reidentificando, em torno de um eixo vital de objectivos nacionais permanentes.

Porque a autonomia sempre foi a soma da memória com os valores, tal como a “polis” sempre se assumiu como federação de aldeias em torno de uma acrópole, de uma colina sagrada, onde tanto há o palácio da governação como o templo da nação, sufragados pela praça pública que lhes dá sustento e que eles representam, em nome da participação da cidadania.

Só existimos porque, desde sempre, nos inventámos. Emergimos como “regnum” ou “respublica” na incubadora da liberdade europeia, dos séculos XII e XII, assumindo-nos como autonomia política, enquanto concelho em ponto grande, para utilizarmos a bela metáfora do Infante D. Pedro, e fizemo-lo quase federando muitas comunas, com e sem carta.

Consolidámos o processo no cerco de Lisboa, no quadrado de Aljubarrota e no discurso dos legistas das Cortes de Coimbra de 1385, numa das primeiras revoluções pós-feudais do nosso espaço civilizacional, quando preferimos o senhorio natural ao senhorio de honra.

Universalizámo-nos na armilar manuelina semeando concelhos e misericórdias pelo mundo fora e até aguentámos os desafios centrípetos da monarquia habsburga e vaticana, apesar de termos sido contaminados pelos receios da inquisição madrilena.

E reinventámo-nos em 1640, separando-nos de forma moderna, levando à prática o mapa de Fernão Álvares Seco de 1565 que, sem ser por acaso, é a primeira representação cartográfica de um Estado. Contudo, apesar de nos conformarmos de forma resistente, não pudemos ser impulso para a revolução atlântica, que passa pelas revoluções inglesa, norte-americana e francesa, porque nos perdemos em absolutismos de facto, até atingirmos esse clímax de despotismo a que demos o nome de Pombal.

Depois nos perdemos entre terramotos políticos e viradeiras, sem forças para regressarmos ao consensualismo. Esgotámo-nos em revoluções e contra-revoluções, com nacionalismos armados em soberanismos e centralismos e reaccionarismos usurpando a tradição dos factores democráticos de Portugal (Jaime Cortesão).

Quase chegámos a regressar ao consensualismo com a regeneração de 1820, mas fomos devorados pela balança de uma Europa das potências que nos proibiu o constitucionalismo da tradição. Mas, apesar de tudo, ainda resistimos, gerindo dependências e hierarquias internacionais e até conseguimos entrar na corrida colonial, em nome da qual entrámos na Grande Guerra de 1914-1918. Contudo, esgotados, entregámo-nos, depois, ao desencanto da viradeira salazarenta e a um restauracionismo despótico e doméstico com que voltámos a proibir a política.


Reinventámo-nos mais uma vez nos anos de 1974-1975, aguentando a Guerra Fria, a descolonização e, depois, a integração europeia e aqui estamos em plena crise dos desafios da globalização, onde importa lutar pela memória e pelos valores que as modas que passam de moda querem fazer apagar. 

 

Pouco interessa que D. Sebastião, nascido em 20 de Janeiro de 1554, bem depois da primeira emissão das Trovas de Bandarra, não tenha correspondido ao perfil do rei visionado pelo posterior sebastianismo. Ele apenas tentou viver como lhe ensinaram a pensar, apenas tentou levar à prática a teoria então dominante entre pensadores da Corte, principalmente entre os confessores e os aios. Ele que podia equivaler-se a um Infante D. Henrique se a respectiva conquista de Ceuta, chamada Alcácer-Quibir, não se gorasse, parecia não possuir o jeito da governação das coisas práticas, não se assumindo como o gestor de uma grande companhia como era a Ordem de Cristo, nem revelando a ganância daquele que procurava juntar monopólios de comércio.

Era também o exacto contrário do tio Cardeal que, esse, sim, representava a síntese entre os respectivos pai e irmão, isto é, entre D. Manuel I e D. João III. D. Sebastião, com efeito, tinha muito do estilo cavaleiresco de D. Afonso V, mas, ao contrário deste, nunca teve um príncipe D. João a cobrir-lhe a rectaguarda da governação ou a levar-lhe o apoio militar em caso de campanha militar de sorte mais duvidosa. Acresce que o próprio reino já não possuía aquele grau de saudável unidade que se manifestava cem anos antes.

Será, contudo, fácil transformar a pessoa do rei morto e derrotado num bode expiatório. Culpa começou por ter toda a comunidade quando nele depositou todas as esperanças chamando-lhe maravilha fatal da nossa idade e dando-lhe sonho demais para gerir um aparelho de poder dominado pela frieza de um cálculo estratégico. A comunidade exigia-lhe impulso para a augmentação quando o que estava em causa era sobretudo gestão e defensão. Teve, portanto, a loucura de querer viver como pensava. O erro esteve, pois, não no viver, mas no pensar e no sonhar. No ousar o impossível quando se impunha a arte do possível, isto é, o abandono das praças africanas e a procura de alianças no concerto na balança de poderes.



Por isso não seguiu os conselhos do Cardeal, as avisadas palavras de D. Jerónimo Osório ou, no momento final, a fortaleza de capitães como Cristóvão de Távora que lhe sugeriram um recuo. Ousou ser falcão em tempo de coruja, não querendo entender que, em determinados momentos, importa que nos submetamos para podermos sobreviver, a fim de renascer aquele vivo que deve lutar para continuar a viver. O exagero de D. Sebastião terá, depois, o exacto contrário no Cardeal-Rei, que não governava como pensava, quando não teve força física e anímica para escolher o sucessor que no íntimo da coerência autonomista, de certo, acalentava, D. Catarina de Bragança, permitindo que o partido de D. Catarina de Áustria acabasse por vencer, através de Cristóvão de Moura.

O Cardeal-Rei não foi, aliás, rigoroso na leitura do nosso direito constitucional, praticando uma inconstitucionalidade por omissão de vontade. E foi essa ausência de intervencionismo real que levou à chamada perda da independência. Atingia-se o clímax de um vazio de rei, tendo colmatado a lacuna o absolutismo colectivista de uma classe política predominante, a da Corte. Sobretudo, num momento em que esse espaço do político estava ocupado pela facção dos Áustrias, enquanto os opositores cometiam o erro de apoiar D. António e de assim cair na ratoeira dos apoios franceses.

Gerou-se deste modo o atrofiamento da nossa vitalidade, quando se impediu a hipótese da república poder manifestar a respectiva vontade permitindo-se a ascensão daquele influente que, invocando a espada e o tesouro, tratou de ocupar o centro político.

Depois de Alcácer-Quibir, o velho partido autonomista, representado pelo Cardeal D. Henrique, com o apoio de Frei Bartolomeu dos Mártires, D. Jerónimo Osório, Diogo de Couto e Pedro Barbosa, está apertado entre os que alinham com Cristóvão de Moura e os que, com Febo Moniz, nos termos da prática de 13 de Janeiro de 1580, quando o Cardeal-Rei teve uma entrevista com os procuradores do primeiro banco, querem resistir, não extinguir a nação, conservando este reino na liberdade em que os reis (... ) antepassados (... ) o fizeram.

Só que, como observa Costa Lobo, Filipe II, relativamente a D. João I de Castela, tinha mais quatro reinos só na península ibérica, além de Nápoles, da Sicília, de Milão, do Franche-Comté, dos Países Baixos e das Américas. Tinha o papa e o Imperador da Alemanha como aliados e não temia nem uma França, ainda dividida por guerras religiosas nem uma Inglaterra a recompor-se da sua ruptura com Roma... Tinha com ele não só a força das armas e do dinheiro, como também algum direito resultante daquele jogo das alianças dinásticas com que a dinastia de Avis se envolvera com Castela, com D. Afonso V, D. João II, D. Manuel e D. João III.



Tinha havido Aljubarrota, contra o perigo castelhano, tal como depois iria suceder Toro, contra o perigo português. Afonso V, o derrotado de Toro, era bisneto de D. Juan I de Castela. Isabel I, de Castela, a vencedora de Toro, era bisneta de D. João I, o vencedor de Aljubarrota. D. João II havia casado o príncipe D. Afonso com Isabel, filha dos Reis Católicos. D. Manuel I, casando com a viúva de D. Afonso, fez jurar o filho D. Miguel da Paz, como herdeiro dos dois tronos. Carlos V casa com D. Isabel, filha de D. Manuel I e, do consórcio, nasce Filipe II. D. João III casa com D. Catarina, irmã de Carlos V e tia de Filipe II. O filho de D. João III, D. João, casa com D. Joana, filha de Carlos V e desta união resulta D. Sebastião. Filipe II é descendente dos vencedores de Aljubarrota e de Toro. Tão geneticamente Avis quanto Habsburgo. Malhas que a genealogia foi tecendo...

Nas Cortes de Tomar de 1581, Filipe II mais não faz do que repetir as Declarações del-Rei D. Manuel, de como se havia de governar o Reyno de Portugal, depois que o Principe seu filho, que herdava Castella, succedesse naquelles Reynos, onde pode ler-se: a principal couza (... ) he que o dito Principe meu filho, e os que depois delle vierem, governem as couzas destes Reynos por officiaes delles, e que a elles todallas couzas delles encomendem, e nom a extranjeiros, que non sabem os costumes da terra, nem se podem tam bem conformar com os outros naturaes delles. Nestes termos, determinava que quando quer que o dito princepe meu filho, ou qualquer dos seus herdeiros, vier a estes Reynos que, logo que nelles entrar, todollos officiaes de Castella e Aragam que trouxer deixem as varas da justiça que trouxerem, e as tomem os officiaes Portuguezes, e nenhum outro official extrangeiro tenha juridiçam em couza alguma, em quanto em Portugal estiver, salvo que os do seu Conselho e officiaes de Castella e de Aragam possam entender nos negocios e couzas que dos ditos Reynos vierem.

Mas como observava Garcia de Resende na sua MiscelâneaVimos Portugal, Castela, / quatro vezes ajuntados, / Por casamentos liados/ Príncipe natural d'ella / que erdava todos reynados. /Todos vimos falecer / em breve tempo morrer / e nenhum durar três annos. / Portugueses castelhanos, / não os quer Deus juntos ver.

Portugal transformara-se num país sem rei nem lei. Um rei que não se perdera apenas em Alcácer Quibir, mas, sobretudo, quando, durante as regências de D. Catarina e do Cardeal D. Henrique, o poder supremo se fragmentou em facções que propiciaram um vazio de ideias que a força das relações internacionais acabou por invadir. Uma lei que se tornou inautêntica quando, por acção e omissão, se desrespeitaram as leis fundamentais que constituíam a base da legitimidade da dinastia de Avis, nomeadamente o apelo às cortes em momentos excepcionais.



O poder real que na Idade Média conseguira a unidade na diversidade de um regime misto, reforçado em 1385 e não desfeito com D. João II, dilui-se, na sequência da morte de D. João III, quando se transformou num mero lugar de confusão de poderes, onde regentes, Consejos, validos e confessores, enredados em disputas de etiqueta e mercês, perderam a representatividade e não respeitaram os limites que constituíam a sua própria natureza. Em vez dos três estados em Cortes Gerais, emerge a dissolução da Corte.

A família real dividiu-se, a nobreza fragmentou-se, a Igreja esboroou-se, e cada uma das facções inventou um bode expiatório e recorrendo a aliados externos, de Filipe II ao próprio Papa. A bissectriz de todo esse paralelograma de forças chamou-se D. Sebastião, O Desejado. Queriam que fosse a segurança da lusitana antiga liberdade. Mas apenas lhe deram jesuítas contra todas as outras ordens, nobreza contra nobreza, e avó contra tio-avô. 

Toda a anterior literatura sobre a educação de príncipes era agora desafiada pela realidade de uma criança que, aos três anos, fora feito rei, com o pai morto antes dele nascer e com a mãe a largá-lo a uma classe política sem o norte do bem comum. Portugal terá um rei educado por uma espécie de laboratório construído por teorias. Em vez de um pai e de uma mãe, deram-lhe aios, do velho soldado D. Aleixo de Meneses a Febo Moniz, confessores como o jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, e mestres, como o cosmógrafo-mar Pedro Nunes.

Aos catorze anos de idade, o jovem rei já assume a governança sem nunca ter sido menino, numa altura em que a comunidade lhe pede que surja um novo reino com as virtudes dos antigos portugueses. Apesar de tudo, D. Sebastião ainda tentará cumprir aquele programa de consta de um memorial escrito pelo seu próprio punho antes de tomar o governo do Reyno. Tentará viver como pensava, sem pensar como vivia. Tentará transformar a carcaça corrompida do velho reino num reino adolescente:Trabalharey muito por dilatar a Fé. Favorecerey muito as cousas da Igreja. Armar todo o Reyno. (... ) Não crer levemente, e ouvir sempre ambas as partes (... ) Conquistar, e povoar a Índia, Brasil, Angola e Mina (... ) Reformar os costumes começando primeiro por mim no vestir, e comer. Em negocios ter primeiro conta com o bem comum, e depois com os particulares(... ) As leys que fizer, mostrallas primeiro a homens de virtude e letras para que me apontem os incovenientes que tiverem. Levar os subditos por amor (...) Serey pay dos pobres, e de quem não tem quem faça por elles.

No fundo, quer ser El Hombre, quer retomar D. João II e por isso, em cerimónia junto do túmulo aberto daquele seu antecessor, embora não ascendente, proclama:Este foi o maior oficial que houve do nosso ofício. Este é o meu rei, este é o meu rei.

É um tempo de apocalipse com os cavaleiros da fome, da peste e da guerra. Fenómenos naturais como tremores de terra, são vistos como castigo de Deus. Em 1531, em Santarém, Gil Vicente teve que fazer uma pregação contra os frades que ligaram o terramoto então ocorrido à permanência em Portugal dos judeus. Em 19 de Abril de 1506, o simples reflexo do sol num crucifixo da Igreja de S. Domingos, qualificado por um cristão novo como mero reflexo de uma vela, leva a que aos gritos de Heresia! Heresia!, saídos de dois frades dominicanos, a populaça, apoiada por marinheiros nórdicos, desencadeie um pogrom com um saldo de dois milhares de chacinados judeus. Cometas são vistos como sinais de Deus. Chegáramos à Índia, conquistáramos as Américas, circum-navegáramos a Terra, mas, na Europa, dividida entre protestantes e católicos, ameaçava o turco e circulavam os judeus.

Nesta pequena casa lusitana, onde em Coimbra e Évora, os próprios teólogos invocavam a razão contra as teses da predestinação do novo agostianismo protestante, neste nosso ninho, onde o experimentalismo e a ciência progrediam, a massa informe de um povo marcado pela história trágico-marítima, enredava-se no providencialismo e retomava os milagres.

Na crise de 1578-1580 as principais forças espirituais portuguesas estão com a faceta de rei natural de Filipe II. Move-as menos a Hispania do que a Cristandade. Sentem que falta uma potência católica na Europa para fazer face tanto ao perigo turco como à ameaça protestante. Entre a aliança com o rei de Espanha, a intervenção dos franceses ou a chamada dos protestantes ingleses, preferem o menor dos males e votam por Filipe II. Mais não fazem do que aquilo que as elites vão fazer com Napoleão através de El Rei Junot. Aquilo que a maçonaria vai fazer com os franceses, a partir de 1806, foi aquilo que a Igreja Católica fez com os espanhóis em 1580. Certo que, depois, ambas as entidades se vão redimir. A Igreja com os alcobacenses e os manuelinhos; a maçonaria com os republicanos, na sequência do ultimatum.

Traidores sempre os houve, principalmente por uma errada interpretação da aliança conveniente no jogo das relações internacionais. Trairam os realistas miguelistas quando cederam aos ditames da Santa Aliança, atarvés de Metternich, Wellington ou Luís XVIII. Traíram os oposicionistas aos salazarismo quando cederam a ditames das internacionais comunistas, socialistas ou liberais, como já antes traíra o salazarismo quando cedeu à moda dos impérios coloniais.

Sempre a tentação de alinhar com outras internacionais ou outras potências em nome de impérios universais. Contudo, em qualquer um dos seus momentos dolorosos, a pátria acaba sempre por retomar a vontade de autonomia, quando os descendentes dos traidores se nacionalizam e sobressai novamente a lusitana antiga liberdade, aquele português antigo de antes quebrar que torcer, aquela mistura de telurismo e oceano que nos faz um português à solta, onde o agricultor vai de caravela pelos mares ou se transforma em bandeirante pelo sertão. Ou, muito principalmente, quando, pela pena, se constrói o poema, cronicando a história ou chamando ensaio à filosofia, aquelas redes que sustentam a imaginação de quem ousou mais além para defender o daquém. Sempre foi assim que, muito cientificamente, fizemos sebastianismo, racionalizando aquilo que anteriormente era um mero fundo imaginativo.


Agora, um Portugal dos pequeninos com a mania das grandezas... esse que não compreende que os problemas económicos apenas se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas...

Quase três décadas e meia depois do fim do “antigo regime”, onde a ilusão revolucionária dos cadetes do 28 de Maio virou uma viradeira, mais fradesca do que caceteira, apenas temos de concluir que também este sistema virou situacionista, recuperando fantasmas e preconceitos da viradeira de sempre, sobretudo nas suas facetas de inquisitorialismo e de centralismo, as mesmas que promovem a sucessão de micro-autoritarismos sub-estatais. Pior do que isso: com uma democracia deslumbrada pela eficácia da governabilidade, reforçaram-se as nossas facetas anti-societárias e anti-pluralistas, para gáudio do negocismo dos chamados homens de sucesso.

Porque, sempre que penso neste país resignado ao rotativismo do mais do mesmo, onde os tiques da persiganga recrudescem, apenas tenho que reconhecer que são altos os custos individuais dos que querem praticar a independência dos homens livres. Porque voltámos àquele autoritarismo de rebanho que vive na tristeza do temor reverencial do “yes, minister” ou do “sim, senhor director”. Daí que os detentores do poder não consigam compreender como se vai acumulando a explosividade da revolta que, numa qualquer encruzilhada, pode ser rastilhada por um qualquer acaso procurado, como se traduzem as nossas habituais crises. Só que a próxima será importada dado que a maioria dos factores de poder já não são nacionais...

 

Presos à pilotagem automática de uma governança sem governo, que se desculpa com a integração europeia e a globalização, deixámo-nos enrodilhar por todos quantos detestam o empreendedorismo e o sentido do risco. Há uma massa cada vez mais inerte e desorganizada que não consegue ser mobilizada para o bem comum, entregando-se alienadamente ao chicote e à cenoura do verticalismo hierarquista do estadão que continua a táctica do enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

Porque há um Estado, filho do Marquês de Pombal, de Fontes Pereira de Melo, Afonso Costa e Oliveira Salazar que teve em Soares e Cavaco os principais restauradores. Geraram estes conservadores do que está, mas não do que deve ser, os tais que até se dizem de esquerda, confundindo esta com o estatismo. Não reparam que o Estado absolutista, seja autoritário ou sectário, pode transformar a democracia no desepero de um partido-sistema que, mesmo quando se transfigura no rotativismo bipartidário, não deixa de manter a mentalidade do partido único ou a cair na tentação usurpadora da personalização do poder

Não há esquerdas nem direitas que sejam secularmente políticas, dado que as chamadas “causas” foram usurpadas por certo confessionalismo político-religioso, quase congreganista, do novo politicamente correcto, como se os valores morais fossem monopólio dos fracturantes do esquerdismo, do partido arco-iris, ou da velha sacristia. Daí que quem quiser ser fiel ao velho mas não antiquado humanismo, estóico, renascentista, ou iluminista, corra o risco de ter que passar para o exílio interno, só porque não alinha com o colectivismo sectário de certas congregações, como avisava Orwell.

 

(Conferência proferida na Ericeira)

publicado por José Adelino Maltez às 17:29

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Biografia
Bem mais de meio século de vida; quarenta e dois anos de universidade pública portuguesa; outros tantos de escrita pública no combate de ideias; professor há mais de trinta e cinco e tal; expulso da universidade como estudante; processado como catedrático pelo exercício da palavra em jornais e blogues. Ainda espera que neste reino por cumprir se restaure a república
Invocação
Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: "Há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las"......
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